terça-feira, 14 de setembro de 2010

Conversa de cachorro-quente II



Às vezes tenho a impressão de que na minha playlist tocam sempre as mesmas músicas. Isso não acontece contigo?
Repara que a salsicha é bem menor que o pão. Vai faltar salsicha para tanto pão.
De que me vale este pão se vai faltar salsicha?

— Eu conheço uma lanchonete onde o pão é menor do que a salsicha.
— Deve ser legal ter um pão com uma salsicha maior!
— Deve ser legal um pão que dure tanto tempo!
— Deve ser legal, né?



Paulinho Motta

Conversa de cachorro-quente I - texto de Rebecca Garcez

Uma cebola picada, três dentes de alho bem amassados - os maiores da cabeça -, dourando em algumas colheres de azeite... Ah, e o aroma? Alecrim e salsinha é o segredo. Extrato de tomate enquanto a salsicha vai descogelando. Quando o molho começar a espirrar, pode desligar o fogo. Pão careca, batata palha, ketchup e mostarda. Ele também gosta de queijo.
Suco de maracujá!
Sentaram.


– Deve ser legal ter pai, né?
– Eu tive por 17 anos.
– É legal ter pai, né?
– Eu só tive por 17 anos.
– Eu já vi gente que tem pai.


– Deve ser legal ter pai... Né?


segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Nomofobia

quando eu era moleque
dibicava bem fundo e
cortava neguinho
na mão

quando eu era moleque
montava no meu camelo
e ia varado até a pracinha

quando eu era moleque
matava as bolas de gude
só de tecão na cabeça

quando eu era moleque
pichava os muros
com mijo
com toda a minha masculinidade

hoje, só a ideia
de não poder atender
quando você chamar
me dá calafrios

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Passeio Noturno II

Entediada, Júlia vai ao shopping alimentar seu desejo de consumo. Precisava comer algo diferente naquela noite. Pediu um sanduíche de salmon defumado. Sorriu para o rapaz da livraria que lanchava ali. Disse que lembrava do dia em que o viu derrubando uma prateleira de livros. Sorriram. Em poucos instantes estavam na casa do livreiro. Davi. Como? Meu nome é Davi. Não importava, aquela noite para ela era diferente e especial. O sofá pequeno era o espaço exato de que precisavam. Lá fora, os pingos da chuva, que escorriam, batiam na caixa do ar condicionado, fazendo um barulho forte, constante e acelerado, que se confundia ao deles, ficando cada vez mais distante aos ouvidos. Na mesa, um bocado de envelopes, fechados e abertos, endereçados a Davi. De súbito, Júlia se levanta. Se recompõe. E sem se despedir sai correndo e vai embora. Davi não consegue alcançá-la.
Meia hora depois: Boom! E a caixa de correios de Davi brilhava pelo retrovisor da moto de Júlia, na rua silenciosa e escura.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Passeio Noturno I

Júlia busca a felicidade dentro das mais simples esperanças. Endividada até o pescoço, não se redime aos gastos supérfluos, nem às apostas no jogo do bicho. Uma de suas poucas diversões. Toda dia é a mesma coisa. Acorda cedo. Toma seu café da manhã. Limita-se apenas a um copo de mate gelado e torradas (destas de supermercado) com cream cheese. Vai até a esquina e faz sua aposta diária. Sempre aposta na milhar 6311. Burro. Volta para casa e vasculha a caixa dos correios com esperanças renovadas, pois já se passaram oito anos. Morar sozinha não é ruim, dizia ela, o chato é ter que cozinhar. A comida quando não é o bastante é demais. Difícil acertar a mão! Exatamente por isso, Júlia come queijo-quente quase toda noite, depois do seu passeio.
A noite chega e Júlia monta em sua moto. E sai pelas ruas. Procura sempre a que mais lhe agrada. A mais calma. Silenciosa, arborizada. Nunca a mesma. Não quer despertar suspeitas. Olha casa por casa, com um cuidado extremo. Minucioso. Examina, como se pudesse saber, a que mais se difere da sua realidade. Traça semelhanças e distinções. E quando escolhe a casa, a satisfação em seu rosto é incontestável. Sua alegria transpassa a angústia e a vontade de chorar, levada por uma euforia que lhe acelera o coração. Ela se aproxima do portão, acende um cigarro, abre uma garrafa de álcool, despeja parte dentro da caixa dos correios, joga o cigarro lá dentro. Pula na moto. E corre. Apenas o suficiente que dê para ver, pelo retrovisor, a caixa de correios explodir. Boom! Os pingos da garoa fina que cai queimam seu rosto, assim como a lembrança dos oito anos sem resposta.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Um momento de reflexão

Eu não sou maluco, eu sou bêbado. E na verdade eu nem to bêbado hoje, só tomei um copo, mas é que eu sou desse jeito mesmo. Hip! As pessoas ficam me chamando de bêbado só porque eu fico bêbado de vez em quando, porque eu bebo de vez em quando. Eu acho que uma cervejinha, uma cachacinha proporciona a interação entre as pessoas, porque todo mundo fica mais solto quando toma um negocinho. Hip! Mas aí eu fico tachado de “o bêbado do bairro”, mas eu não ligo não, porque sei que todo mundo gosta de mim, eu sou divertido, ainda mais quando fico bêbado. Hip! A única pessoa que não me acha divertido é a minha mulher. Minha mulher fica puta quando eu chego em casa de porre. Hip! Quando eu chego em casa de porre ela me manda dormir na sala. Eu durmo lá todo dia. O nosso sofá é uma porcaria, eu acordo no outro dia com uma dor no corpo dos infernos. Ressaca? Não, eu não acordo com ressaca. Não tenho essas frescuras não. Meu fígado já está calejado. O problema é que as pessoas não me respeitam, só porque de vez em quando eu fico bêbado, mas eu acho que isso não tem nada a ver, porque eu sou só um bêbado, tem gente que é até político e neguinho não desrespeita. Eu nem to bêbado agora, mas o pessoal fica achando que eu to bêbado o tempo todo, aí ninguém me respeita, porque bêbado não tem respeito, mas político tem. Hip! E eu acho que isso tá errado, porque bêbado é só uma pessoa que bebe um copinho de nada. Eu não sou igual esses maconheiros, que fumam maconha, essas paradas de pó e saem fazendo merda por aí com essas paradas de tóxico, nem político que também sai fazendo merda por aí, não, eu só bebo um copinho de vez em quando, mas aí o pessoal não respeita. Todo mundo bebe e fica bêbado de vez em quando também, a diferença é que eu fico bêbado mais vezes do que todo mundo. Hip!
Outro dia eu cheguei bem no bar, aí saí de lá mal, mas pra mim isso não tem nada demais, porque eu fui lá pra beber mesmo. Hip! Quando ficou tarde a minha mulher foi me buscar, ela sempre me procura, e nem adianta eu mudar de bar, porque ela vai me procurando de bar em bar. Quando ela me acha ela vai lá no balcão e me chama, aí eu digo que já to indo, aí ela vai pra porta do bar e fica de braços cruzados e balançando a perna, só que eu não dou idéia, aí ela volta lá dentro e me chama de novo. Eu até convido ela pra tomar uma comigo, mas ela nunca aceita. Eu acho que se ela bebesse, não brigaria tanto, porque ela também ficaria bêbada junto comigo e não teria do que se queixar. Hip! Mas ela nunca se acostumou com o meu jeito, sempre me perturba por causa das mesmas coisas. O problema é que quando nós casamos, ela tinha a esperança de que eu mudasse, mas eu nunca mudei e eu tinha a esperança de que ela nunca mudasse, mas ela mudou; além de chata, agora tá toda baranga. Hip! Não dá mais pra pegar ela, ela tá muito ruim! Outro dia eu tomei meia dúzia de cerveja na intenção dela, mas não deu jeito. E agora a desgraçada deu pra ser violenta e de vez em quando me baixa a porrada, mas bater em bêbado é mole! Hip! Minha primeira surra foi quando eu cheguei em casa de madrugada um pouco bêbado e ela estava me esperando com uma vassoura na mão e eu perguntei se ela iria varrer ou voar. Acho que ela não gostou muito da brincadeira e me arrebentou, desde esse dia eu sinto dores pelo corpo. Eu queria que ela fosse igual a Soraia, pô, a Soraia é mó porra loca, bebe pra caralho e ainda é a maior gata. A Soraia seria a parceira ideal, se ela não fosse sapatão. Se ela não fosse sapatão eu pediria ela em casamento e casaria com ela lá no bar do Chiquito. Mas nem dá pra brincar com ela assim, porque o marido dela, a Jane, é carne de pescoço, é mulher em estado bruto. Hip!
Eu acho que a Soraia nem é sapatão direito, eu acho que ela é mais mulher do que homem, tipo assim, ela é menos sapatão do que a Jane, porque a Jane é invocada, usa cabelo curto, calça jeans, cordão e pulseira grossa e um anel grandão no dedinho mindinho. Vou ser sincero, eu tenho medo da Jane, porque ela é grande pra dedéu, porque eu acho que se ela me pegar ela me arrebenta. Eu nem chego perto da Soraia direito, porque eu não sou maluco, eu sou bêbado. Hip!
A Soraia chapa legal, aí a Jane fica puta com ela, que nem a minha mulher. A Jane deveria ficar com a minha mulher e eu com a mulher da Jane, a Soraia, porque a gente gosta de beber muito e a minha mulher e a Jane não gostam de beber. Pronto, elas formariam o casal perfeito. Aí a minha mulher iria parar de encher o saco e teria um homem em casa do jeito que ela quer e eu e a Soraia iríamos viver peregrinando pelos bares da vida, do jeitinho que a gente gosta. Hip!

quarta-feira, 17 de março de 2010

Duelo

Voltei à casa de Luiza depois de seis meses sem dar notícias. Parei por alguns segundos de frente ao portão buscando a coragem que me havia suprimido a vontade de amar. Duas sombras me chamaram a atenção por trás da cortina. Vi um homem saindo, selando a despedida com um singelo beijo em Luiza. Meu punho automaticamente se fechou. E o encarei com os olhos ígneos. O sujeito acendeu um cigarro. E como se quisesse, feito um bicho, demarcar território, também quis acender um. Eu não fumo. Pela primeira vez na vida me arrependi de não ser fumante. Minha posição agora era de inferioridade ao sujeito, que baforava com completa arrogância aquele cigarro. Me restou fazer ruídos com a boca. Eu chupava os dentes (como o meu pai depois de comer), como se tivesse sugando uma nesga de carne entre eles. Coisa de macho. Talvez isso o intimidasse. Mas ele não se resignou e acendeu mais um com a ponta do outro. Eu estava em desvantagem psicológica. Fui de encontro ao desconhecido. Os punhos fechados. Com um peteleco o homem jogou fora o cigarro, ao qual sorvera de soberba na minha frente. Um soco e dois chutes na boca do estômago o sujeito me acertou. E me deixou retorcido na calçada. No chão eu silabava desculpas com dificuldade. Mais uma vez Luiza cuidou de mim.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Room in Brooklyn


i.

O sol da manhã lançava as suas primeiras notas no céu, acordando pouco a pouco a cidade. Marie já estava devidamente sentada de frente à janela do canto do quarto. Deu o primeiro gole no chá de framboesa, queimando levemente a língua. Deixou a xícara de lado, de modo que a bebida esfriasse um bocado. Abriu o caderno de capa azul e releu os últimos parágrafos que havia escrito na noite anterior. Respirou fundo e sentiu o olhar se perder na imagem dos personagens que criara.

Marie não mais se identificava ali. Nada mais parecia óbvio. Voltou algumas páginas. Suas percepções se alternavam a cada instante. Não entendia porque Olivier Charcot havia aparecido. Marie queria mais. O que havia feito até então não mais a correspondia.

Olhou novamente para o céu. Se espantou com seu tom ainda mais azulado. Buscava agora entender o que as nuvens queriam lhe dizer com aqueles enigmático desenhos.

Talvez não quisessem dizer nada. Talvez esperassem que ela própria reagisse, que tomasse uma atitude. Marie enxugou as duas lágrimas que ameaçavam cortar-lhe o rosto, suspirou profundamente e reconheceu: aquele texto parecia velho, estava horrível. Decidiu iniciar tudo de novo, a começar pela morte do principal personagem.

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ii.

Naquele primeiro dia de céu azul, a Sra. Benjamin conseguiu finalmente sair da cama. Sentou-se na salinha ensolarada, passeando os olhos pelos telhados de Nova York, às vezes pousando sua melancolia sobre o vaso de tulipas.

Até aquele momento — e a guerra acabara há seis longos meses! — ela não havia recebido uma única linha de Arthur. Estaria ainda naquele povoado da Itália? Estaria ferido? Teria se esquecido de tudo? Quem sabe perdera a memória para sempre, vítima de algum estilhaço no cérebro?

Uma brisa fria entrava pelos cantos, apesar do sol que batia em seus pés, e ela estremecia de frio e de medo.

Caminhou até a cozinha e abriu a dispensa, sem saber o que iria encontrar. Há mais de uma semana não ia ao mercado — estava mesmo sem apetite nos últimos dias — e, quando conseguia levantar da cama, obrigava-se a engolir uma torrada, às vezes acompanhada de um copo de leite.

Nada mais naquela casa fazia sentido. O chá já não tinha mais sabor, e as manhãs já não mais lhe inspiravam a escrever cartas sem respostas. Desde que Arthur partiu sofria (talvez fosse por problemas no fígado), mas de qualquer maneira sofria.

As lembranças vinham a todo momento. Queria controlá-las, mas já não era dona de si mesma.

Voltou para a salinha, seu antigo vaso de tulipas ainda estava lá. Se sentiu protegida. Olhou para o céu que parecia lhe dizer algo, mas que não compreendia. Seu pensamento estava em Arthur e suas mãos sobre a nova carta que escrevia.
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Alexia Bomtempo
Elaine Olanda
Maria Helena Malta
Paulo Henrique Motta
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Estes dois contos foram escritos a 4 mãos num exercício de escrita da aula de Teoria da Literatura da professora Rosana Khol. A tarefa consistia em escrever o quanto desse num determinado tempo, tomando como ponto de partida para a inspiração a pintura Room in Brooklyn de Edward Hopper e depois passar para o colega do lado para que ele continuasse. Assim, cada um escreve no seu estilo, mas continuando a ideia anterior.


segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Blow-up

Acordei naquele dia sem lembrar de nada do dia anterior. Caminhei até a sala. Vi minha mãe por sobre um monte de papeis de bala rasgados, bolas estouradas e doces pisoteados. Sua leveza me encantava. Era linda minha mãe. Dedicada e carinhosa. Pensou em todos os detalhes. Não hesitara em acordar cedo e limpar a sujeira que mais um ano da minha vida, que se arrastava, fazia em sua sala pequena. Estava tudo desarrumado e as coisas postas fora do seu lugar. Voltei meu olhar para o quarto e meu pai ainda estava esparramado na cama. Olhei as fotos da noite passada por sobre a mesa. E chorei. Não consegui engolir o choro. Minha mãe encostou a vassoura na parede e alisou os meus cabelos, suave. Chorei de soluçar. Tentei respirar fundo para que o descontrole não rasgasse o silêncio da manhã. Mas meu pai despertou. Caminhou em minha direção. E me deu um tapa. Bem forte. A raiva que me atravessou o estômago não podia mais mudar a fotografia que eu tinha na mão. Ele seria para sempre a pessoa que ganhou o primeiro pedaço do meu bolo de aniversário.